Se alguém fizer um levantamento da quantidade de artigos que são publicados na comunicação social sobre ferrovia, constatamos facilmente que existe uma paixão desmesurada pela discussão à volta da bitola, como se a ferrovia girasse à volta disso.
Curioso, é que tudo o resto e que de facto tem impacto no transporte ferroviário já não é discutido. Não interessa, dirão uns. Mas o que estão a fazer é apenas e só a distrair as massas com uma espuma, que é um não tema. Portugal não está isolado numa ilha ferroviária, está interligado numa rede ferroviária que é ibérica, com sistemas de comunicação diferentes e redes elétricas diferentes, mas ao menos temos a mesma bitola, o que facilita o transporte além-fronteira. Valha-nos isso… o termos a mesma bitola.
Por outro lado, o governo português tem dito ao mundo que é a altura de apostar na ferrovia. Foram anos de desinvestimento e agora é preciso investir no crescimento do transporte ferroviário, até porque é mais sustentável e há um compromisso forte com a descarbonização dos transportes. Sabendo que o transporte ferroviário consome 5x vezes menos energia e emite menos 9x emissões de CO2 que a rodovia, faz todo o sentido, óbvio. Mas é claro que aquilo que o governo quer é fazer obra, investimento público, para melhorar a infraestrutura ferroviária, aproveitando a onda de fundos europeus disponíveis para esse efeito.
Só que investir na ferrovia é muito mais que isso. É preciso ter um pensamento estratégico e deliberado sobre como potenciar o caminho de ferro. E isso obriga a perceber como funciona a ferrovia, a intermodalidade, a logística, a necessidade de haver terminais adequados, agilidade de processos e de licenciamento, o que dá trabalho.
Se pretendermos atingir as metas de transporte ferroviário com as quais o Estado português se comprometeu, temos de procurar criar mecanismos de incentivo que permitam à ferrovia ser mais competitiva que a rodovia. E isso significa que os custos de contexto da atividade ferroviária deveriam ser abordados de forma a aumentar a competitividade da ferrovia, que é o que os restantes países europeus estão a fazer, exceto Portugal.
Estou a falar de custos como a Taxa de Uso, que é previsto aumentar 23% em 2024 e 25% em 2025, enquanto as portagens das ex-SCUT vão reduzir em mais de 30% para a rodovia. Estou a falar da imposição legal que o governo português determinou de obrigar os operadores ferroviários a terem 75% dos seus combustíveis em 2025 com base em energia renovável, o que vai obrigar a um aumento de custos incomportável para a ferrovia, enquanto para a rodovia não impõe qualquer limite mínimo de combustível renovável (que tem muito mais volume no mercado e é muito mais poluente). Estou a falar da criação de taxas de acesso a portos marítimos para comboios e não fazer o mesmo para camiões. Estou a falar de legislar e aprovar apoios financeiros à rodovia para fazer face ao aumento de combustíveis e não fazer o mesmo para apoiar a ferrovia. Para terminar, decide-se fechar o maior terminal ferroviário de mercadorias do país sem determinar e sem planear que outro terminal teremos em alternativa.
Mas depois a grande aposta do Estado português é a ferrovia. Alguém ainda está convencido que o problema é a bitola? Ajudem-me a perceber, que eu não chego lá.
Miguel Rebelo de Sousa