“Descarbonizar a 100% o setor da ferrovia até 2030? Isso não é possível” – Miguel Rebelo de Sousa
22 Jun, 2024

Em entrevista à TSF/Dinheiro Vivo, o diretor-executivo da APEF, Miguel Rebelo de Sousa revela espera que Governo reveja objetivos ambientais para o setor, criticando falta de alinhamento entre entidades e decisões contraditórias. E alerta que os operadores estão descontentes com a falta de apoios equitativos face ao setor rodoviário.

As empresas ferroviárias de transporte  de mercadorias estão descontentes com as atuais condições que Portugal assegura para a atividade. Quem o diz é o diretor-executivo da Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias (APEF), Miguel Rebelo de Sousa, que, em entrevista ao Dinheiro Vivo e TSF, explica que o mal-estar se deve a promessas por cumprir dos sucessivos governos, como a ausência de incentivos e de equidade nas medidas tomadas em comparação com o setor rodoviário. Ainda assim, o gestor espera sensibilidade do novo Executivo, mas alerta para o facto dos operadores, como a Medway, preferirem cada vez mais o mercado espanhol. O gestor critica também objetivos ambientais demasiados ambiciosos para o setor, considerando-os inatingíveis até 2030 pela forma como foram desenhados, em Portugal.

Os planos para a ferrovia tem dado prioridade – o que é natural – às necessidades dos passageiros. Com este governo e esta nova configuração na Assembleia da República, haverá espaço para surgir também uma estratégia para o transporte ferroviário de mercadorias. E que estratégia poderá ser essa?

É verdade que tem havido sempre uma maior predominância para o transporte de passageiros, pela sua natureza diz mais às pessoas, às cidades e à gestão do ordenamento do território. Mas o investimento na infraestrutura ferroviária ao abrigo do Programa Ferrovia 2020, pela Infraestruturas de Portugal [IP], foi feito, acima de tudo, para dar melhores condições ao transporte de mercadorias, curiosamente. Muitas vezes não há essa perceção, mas o investimento foi financiado ao abrigo de um plano de investimentos que está, essencialmente, vocacionado para melhorar as condições e a capacidade do transporte de mercadorias. Tendo em consideração este novo Governo, o que queremos é que, apesar de ter havido um grande foco na infraestrutura para melhorar a capacidade de resposta para os transportadores de mercadorias poderem operar, se vá para além da infraestrutura. Não basta termos uma boa rede ferroviária para termos operadores a circular dentro da rede da maneira adequada, da maneira mais otimizada e, acima de tudo, permitindo potenciar aquilo que foi o investimento feito. Queremos com esse investimento aumentar a carga transportada na linha ferroviária por várias razões, a primeira das quais porque é mais sustentável, e porque nos dá mais capacidade de podermos potenciar sinergias, ser um transporte mais eficiente, mais sustentável e mais amigo da descarbonização da economia.

E o que é que está a impedir esse processo?

É um processo que não é tão óbvio quanto possa parecer. Temos que garantir que o transporte de mercadorias, desde o momento em que é pedido até chegar ao seu destino, ocorre da melhor maneira possível, porque o que as pessoas querem é um transporte fiável, seguro e ao mesmo tempo barato. Para sermos tudo isto temos que ter uma melhor infraestrutura, é verdade, mas também temos que ter condições para o mercado ser mais competitivo. O transporte ferroviário é em si uma operação logística mais complexa. Não é tão simples quanto arranjar um operador rodoviário para fazer o transporte de mercadorias e ao mesmo tempo não é tão barato como é hoje em dia o transporte rodoviário. É preciso trabalhar em várias dimensões para podermos ser mais competitivos e mostrar que existe todo o interesse em optar pelo transporte ferroviário em vez do transporte rodoviário. Sabemos que o transporte ferroviário não vai dar resposta a tudo, precisamos sempre da rodovia. O que tem de haver é uma maior intermodalidade, garantir que conseguimos utilizar o melhor de cada um dos transportes para o transporte de mercadorias.

O que é que está à espera deste novo Governo?

Precisamos de reduzir custos de contexto. Hoje em dia, enquanto operadores ferroviários, somos confrontados com uma série de custos de contexto que apenas oneram a nossa atividade. Criam uma grande dificuldade de sermos competitivos face aos outros modos de transporte. A equidade entre modos de transporte é essencial. Os principais temas que afetam a estrutura de custos de um operador ferroviário são custos com energia, custos com pessoal, custos com a taxa de uso, que é no fundo uma portagem que os operadores ferroviários têm de pagar para poder circular na rede.

A tal que teve um aumento de 20%.

Um aumento de mais de 20% em 2024. E isso é algo que tem que ser trabalhado, claramente. Se não for, nunca vamos ser mais competitivos. E não podemos viver uma situação, que é uma situação difícil de compreender para quem vem de fora. Quer dizer, estamos focados em aumentar o transporte ferroviário, mas depois aumentamos os custos de contexto que o transporte ferroviário tem de ser confrontado para operar e, ao mesmo tempo, reduzimos esses custos para os operadores rodoviários. Eles [operadores rodoviários], no fundo, acabam por ficar mais competitivos. Quando dizemos que queremos descarbonizar o setor dos transportes, promover uma transição modal para aumentar a quota de transporte de mercadorias via ferrovia e ao mesmo tempo torna-mo-la a mais cara, alguma coisa não está bem. Não estão a ver o filme como um todo, nem estão a pensar de uma forma integrada naquilo que é o setor dos transportes.

Tendo em conta esses constrangimentos a um nível elevado, há descontentamento entre os operadores, ou ainda não?

Há um nível de descontentamento dos operadores, porque foi gerada a expetativa de que os custos de contexto iriam ser reduzidos. Fazia todo o sentido para o Estado que assim fosse. Aliás, é o que está a acontecer noutros Estados europeus, como Espanha, que é o nosso mercado mais direto e no qual os nossos operadores também operam. Os operadores conseguem claramente, no seu dia a dia, perceber quais é que são as diferenças, quer em Espanha, quer em França, quer em Itália, quer na Alemanha, quer na Áustria, quer na Holanda. Todos estes países já aprovaram pacotes para promover o aumento do transporte de mercadorias pela via ferroviária.

Esse mal-estar pode levar a que algum operador, por exemplo, como a Medway, que é herdeira da CP Carga, decida sair do país e se fixe em Espanha, por exemplo?

Isso era uma coisa bastante trágica para o transporte ferroviário de mercadorias. O transporte ferroviário de mercadorias já é um mercado liberalizado desde 2007, 2008. A Medway, neste caso concreto, representa cerca de 80% do mercado e se acontecesse uma coisa destas era negativo. É verdade que a Medway opera em Portugal e em Espanha; é verdade que a Medway tem tido em Espanha um aumento muito grande de quota de mercado, tem sido o operador que mais tem crescido em Espanha e tem sentido um grande incentivo pela parte das autoridades espanholas para continuar a sua senda de investimento no mercado espanhol. Vai passar a ser responsável pela Renfe Mercadorias. A Renfe, que era um operador público, fez um concurso público para a concessão da operação daquilo que era a área das mercadorias e a Medway ganhou. A Medway está de facto a fazer um forte investimento em Espanha.

Há um risco do centro de decisões ser deslocalizado de Portugal para Espanha?

A Medway também está a investir fortemente no mercado nacional em várias dimensões e a nossa expetativa é que esse investimento tenha caminho para ser feito. Mas também não deixo de dizer que temos tido tantos obstáculos e tantas dificuldades para avançar com esses investimentos que no final do dia é normal que um acionista pense até que ponto é que faz sentido continuar a insistir num mercado onde, pelos vistos, não tem condições para ser competitivo quando ao lado tem outro mercado onde está, que tem incentivos para operar, tem incentivos à transição modal, incentivos à descarbonização dos transportes. Até para comprar comboios elétricos Espanha tem incentivos. Recebem, no fundo, financiamento – e financiamento sem custo. Em Portugal, não só não damos qualquer tipo de apoio como ainda por cima tornamos mais caro o transporte de mercadorias. É um contrassenso.

Com este governo as coisas podem mudar, pode haver uma maior sensibilidade nesse aspeto?

Têm de mudar, porque estamos a fazer um investimento tão elevado na infraestrutura, um investimento tão grande em melhorar as condições para podermos ter uma operação mais adequada àquilo que são as necessidades do mercado. Os operadores têm interesse em investir em Portugal, em trazer comboios novos – já mostraram essa vontade e já efetuaram compras de comboios para Portugal. O Governo tem de perceber isso e vai perceber, claramente, que quando estamos a falar de investidores que estão focados no mercado, se não damos condições para poderem operar em Portugal vão para outros mercados. E isso é algo que temos que evitar.

Já teve a oportunidade de transmitir essa mensagem ao ministro das Infraestruturas [Miguel Pinto Luz]?

Já tivemos a oportunidade de transmitir ao ministro Infraestruturas alguma insatisfação e alguma preocupação pelo facto de ter havido uma série de compromissos, que foram assumidos pelo Estado português ao longo dos últimos anos, que não foram cumpridos. Compromissos que estão a acarretar fortes perdas para estas empresas pelo facto de não estarem a ser cumpridos. É que não faz sentido não estarem a ser cumpridos porque estão, no fundo, a dificultar o que o Estado português pretende como objetivo, que é aumentar a quota de transporte de mercadorias pela via ferroviária. Se queremos descarbonizar a economia e o setor dos transportes temos de fazer algo para isso.

Quando fala em perdas para estes operadores, qual é a ordem de grandeza?

São milhões de euros. Estamos a falar de operadores que assumiram que não iriam aumentar preços para os seus clientes por conta de compromissos que o Estado português fez com eles, para evitar exatamente que os clientes acabassem por ir para a rodovia – para evitar mais camiões nas estradas. Os operadores assumiram isso [aumento de custos] com base na expetativa de que, havendo resoluções a aprovar apoios, havendo compromissos efetivos perante os responsáveis das empresas que que estão a operar em Portugal – quer do ministro [refere-se aos anterior ministros das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos e João Galamba] , quer do primeiro-ministro [refere-se a António Costa] – dava a entender que os compromissos iriam ser cumpridos. O Estado português é um Estado de Direito e não temos razões para duvidar do bom nome do Estado. Percebemos que às vezes as prioridades podem ser outras [refere-se ao atraso que a pandemia de covid-19 provocou na execução do Plano Nacional da Ferrovia], mas já passou algum tempo, é preciso voltar a pôr isto no topo da lista das prioridades, porque, precisamos dessas medidas.

E falando em prioridades, um dos grandes objetivos para para a ferrovia nacional é o TGV. O prazo do concurso do TGV foi adiado para Julho. O preço mantém-se. A Infraestruturas de Portugal justifica este atraso de cerca de três semanas com motivos técnicos. Como é que olha para para este novo capítulo do TGV?

A APEF representa os operadores de mercadorias e posso falar, antes de mais, sobre a alta velocidade.

Mas o TGV também terá impacto, certamente.

É isso que ia dizer. A alta velocidade é muito bem-vinda, porque hoje em dia temos uma infraestrutura altamente sobrecarregada. Por exemplo, a linha do Norte, Lisboa-Porto, por onde passa a grande maioria da carga em Portugal também serve os Alfas, os Intercidades, os regionais e os suburbanos. A quantidade de comboios que utiliza a mesma linha é muito grande. A alta velocidade vai permitir aliviar bastante a linha do Norte. Vai permitir aumentar a capacidade para os comboios de mercadorias poderem circular na linha do Norte e vemos isso como transformador daquilo que pode ser a capacidade de termos muito mais carga a ser transportada pela pela rede ferroviária nacional. Dito isto, a alta velocidade está vocacionada para passageiros. Sobre esse projeto, o que nós queremos é que saia do papel o mais depressa possível e que seja implementado o tanto quanto antes para podermos todos beneficiar dessa nova linha, não só enquanto cidadãos, mas também enquanto operadores de mercadorias podermos beneficiar de mais canais e de mais capacidade disponível para transportar carga.

O país está neste momento num ciclo intenso de investimentos, até mesmo na questão da alta velocidade. Como é que avalia o impacto das políticas públicas que têm sido tomadas nos últimos tempos a favor da ferrovia, considerando que a ferrovia compete diretamente com a rodovia?

Quando falamos do transporte de mercadorias não vale a pena dizer que não compete diretamente [com a rodovia]. Os eixos de transporte de mercadorias que são utilizados para podermos exportar mercadorias tem concorrência direta na rodovia com a A23, a A25. A ferrovia não teve grande investimento ao longo de várias décadas. Todos percebemos que todo o país estava a viver um atraso bastante grande e precisava de ter investimento na rodovia, por exemplo. E esse investimento da rodovia reduziu bastante as distâncias que existiam dentro do país. Agora, com o plano de investimento que temos feito na ferrovia, estamos a tentar reequilibrar a equação. É muito importante que esse plano de investimentos aconteça. Também é verdade que está a acontecer tudo ao mesmo tempo e isso traz um créscimo de dificuldade grande para a execução, porque temos neste momento todos os eixos ferroviários em obra, o que faz com que tenhamos uma pior qualidade de serviço a prestar. Cria constrangimentos operacionais, mas, acima de tudo, queremos é que as obras terminem o mais depressa possível e possamos passar ao novo ciclo, que é o ciclo de podermos aproveitar as obras terminadas e ter a linha disponível para todos.

O novo Governo já fez saber que pretende avançar com a linha de alta velocidade entre Lisboa e Madrid, também com a construção da terceira travessia do Tejo e o novo aeroporto de Alcochete. As empresas que representa têm sido chamadas a participar nestes processos, quer nas obras em curso que falou agora, quer de futuros projetos?

A associação teve a oportunidade de contribuir e de fazer parte do grupo de trabalho que elaborou o Plano Ferroviário Nacional, que já é bastante abrangente naquilo que é o plano de investimentos que o país se propõe fazer para as próximas décadas. No que diz respeito a outras obras, como a terceira travessia do Tejo e o aeroporto, são obras que irão permitir ao país ter outra capacidade de modernização da sua economia e vão, naturalmente, também potenciar uma série de outras negócios e a nossa capacidade como país exportador. Temos muitas expetativas relativamente a isso.

Quanto aos impactos das políticas públicas para o transporte de mercadorias implementadas nos últimos anos – já falou de alguns constrangimentos e de alguma falta de equidade – os dados relativos ao transporte ferroviário assinalam uma quebra de cerca de 10% na atividade no primeiro trimestre, face ao período homólogo. Esta é uma quebra apenas justificada com o tal desvio de incentivos para a rodovia, ou existem outros fatores que estão aqui a provocar esta quebra da procura?

A questão financeira é muito relevante por não sermos competitivos face à rodovia, e para sermos competitivos temos que trabalhar os eixos que nos permitem ser competitivos. E esses eixos foram aqueles que há pouco falava: a taxa de uso de infraestrutura, que é fundamental, os custos com a energia. A economia como um todo teve uma série de apoios para fazer face à subida dos combustíveis. Quando houve aquela subida elevadíssima dos combustíveis, em 2022 e 2023, e também de energia, os operadores ferroviários não tiveram a possibilidade de poder usufruir desses benefícios.

Estão ligados à IP e à CP.

Uma das nossas reivindicações é que os operadores possam adquirir energia a quem quiserem, da forma que quiserem, desde que cumpram as regras e que permita garantir que se percebe muito bem quem está a utilizar e que energia está a utilizar. Foi feito um grupo de trabalho, até com a AMT [Autoridade da Mobilidade e dos Transportes], o regulador, sobre esse tema e as conclusões a que chegámos no âmbito deste trabalho foi que era possível. Agora é preciso tomar os passos necessários para chegar lá. Tudo isso demora o seu tempo, demora muito mais tempo do que os operadores gostariam, e isso é outra coisa que também temos que refletir. Como é que podemos ser mais rápidos na implementação de medidas? Porque é tudo muito pesado e acabamos por perder muito tempo entre momentos sem se perceber muito bem o que é que vai acontecer e quando. E temos expetativas que as coisas aconteçam dentro de certos certos calendários e depois não acontecem.

O que é que acha que está a falhar?

A execução e o alinhamento entre entidades públicas. Quando falamos em energia temos que falar com a DGEG [Direção-Geral de Energia e Geologia], com a ERSE [Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos], com o IMT [Instituto da Mobilidade e dos Transportes], que também é o regulador técnico da ferrovia, com a AMT, para garantir que tudo está alinhado no que diz respeito às regras da concorrência. Estamos a falar de várias entidades públicas que é preciso interagirem entre elas, comunicarem e definirem um plano de trabalho que seja exequível, e muitas vezes o alinhamento entre entidades não é fácil. Todos nós, no nosso dia a dia, já sentimos alguma vez que as coisas estão aqui, mas depois já deviam estar noutra entidade e não estão ainda, ficamos ali um bocado perdidos entre entidades e isso é algo que podíamos trabalhar.

Essa falta de alinhamento pode, de alguma forma, comprometer as metas de descarbonização que o setor tem e que o país também já se comprometeu junto de Bruxelas?

Poder pode. Se não começamos a fazer uma execução mais rápida e garantimos que as coisas acontecem dentro daquilo que é o o tempo útil, quanto mais tarde começarmos a fazer as mudanças mais difícil é atingir os objetivos de descarbonização. Queremos caminhar para lá e temos os instrumentos para o fazer, mas há passos quase procedimentais que acabam por dificultar este processo. Um exemplo: dizemos que queremos descarbonizar a economia, mas depois olhamos para os modos de transporte e dizemos  que o setor dos transportes é responsável por cerca de 25% a 30% das emissões de CO2 [dióxido de carbono]. Disso, a ferrovia é responsável por um milésimo da percentagem das emissões. É uma percentagem muito reduzida. No entanto, o Estado português decidiu que, para atingir as metas de descarbonização os operadores ferroviários acabem por ter 100% da sua energia com base em fontes de energia renovável em 2030, e nós sabemos que isso não é possível.

E os 75% a partir do próximo ano?

É impossível. E já foi dito ao Governo. Isso foi uma decisão do Estado português, no âmbito de uma transição de uma diretiva comunitária em que todos os países europeus se comprometem com uma redução de emissões de CO2 do setor dos transportes, para atingir os objetivos de descarbonização da economia. Em Portugal, temos aquela tentação de mostrar que conseguimos fazer mais e vamos mais longe do que nos é pedido. O Estado decidiu fazer a transposição de uma diretiva que aprova um decreto-lei que estabelece um objetivo de descarbonização para a ferrovia, que mais nenhum país limitou e condicionou para o transporte ferroviário. Além disso, não impõe limites nenhuns para os outros modos de transporte e acaba por dizer que a ferrovia tem que ser muito mais sustentável como um todo para podermos atingir os objetivos, sendo nós já um transporte não só mais sustentável como o que tem menos emissões. Não é por essa via que vamos lá chegar. É preciso parar um bocado e pensar de uma forma muito concreta. Se temos a vontade de atingir estes objetivos, como é que vamos fazer para lá chegar? E que medidas é que vamos implementar? Somos muito voluntaristas a definir os objetivos, mas depois, a seguir, como é que vamos fazer para lá chegar? Já tínhamos era que ter chamado os operadores, chamar os diferentes setores – rodoviário, aviação, marítimo, o ferroviário -, e perceber o que é que é possível implementar dentro destes prazos para, como país, nos comprometermos com esse objetivo. E depois há uma decisão política. O Governo pode dizer não, mas sem envolver os setores, fica difícil.

Ainda não conhece os planos do Governo neste domínio?

O meu entendimento é que o Governo, o que pretende fazer é alinhar com o que outros países estão a promover. Não faz sentido estarmos a estabelecer para Portugal objetivos mais ambiciosos e agressivos do que outros países europeus, até porque as nossas emissões de CO2, no âmbito das emissões da Europa como um todo, são bastante reduzidas.

Voltando à taxa de uso cobrada pelo Estado, foram aumentadas em mais de 20% no último ano. Já fez saber ou já reuniu com o Governo sobre essas preocupações, sobre a redução de taxas, tal como são suportadas pelo Orçamento de Estado, as reduções das taxas de portagem nas autoestradas?

Quando falamos na redução de portagens, ou melhor, na isenção de portagens das ex-SCUT, estamos a falar de um valor de cerca de 157 milhões de euros por ano, que é o Orçamento de Estado que vai ter de suportar. Somos todos nós quando falamos na taxa de uso. A taxa de uso é um valor completamente diferente. E, por exemplo, a Áustria decidiu, por uma razão estratégica, que o transporte de mercadorias iria ter taxa de uso zero, mas os transportes passageiros têm taxa de uso. Mas como querem incentivar a transição modal do transporte de mercadorias para a ferrovia, a taxa de uso na Áustria só para as mercadorias é zero. O que estamos a falar é um valor de cerca de 10 milhões de euros por ano. São 15 vezes menos do que as ex-SCUT. Se o Estado português está a isentar de portagens nas ex-SCUT, como é que não quer, por uma razão até equidade, uma medida equivalente para a ferrovia, que são cerca de 10 milhões de euros por ano? Não é esse valor que onera o Orçamento de Estado no seu cômputo geral, e dá um sinal fortíssimo para aquilo que é o transporte de mercadorias no mercado ferroviário.

Porque é que acha que o Governo não o faz?

Acho que tem que haver, mais uma vez, alinhamento dentro do Governo, neste caso concreto. O atual Governo mostrou-se sensível aos nossos argumentos e ficou de dar uma resposta tanto quanto possível. Estamos à espera de resposta e podermos chegar a uma solução que nos permita não perder competitividade face à rodovia, porque o grande objetivo é não ficarmos numa situação em que perdemos competitividade face à rodovia. É estranhíssimo o Estado dizer que quer investir na ferrovia, que quer aumentar o transporte ferroviário, mas depois a ferrovia perde competitividade por uma decisão do próprio Estado.

Mas esse incentivo seria o fim da taxa de uso, por exemplo?

Seria, obviamente, muito bem-vindo para os operadores ferroviários. Se o Estado português tiver outra ideia que a apresente e discutiremos. Já ouvi o secretário de Estado das Infraestruturas [Hugo Espírito Santo] dizer que o que se estava a equacionar era uma subida de cerca de 3% da taxa de uso, por volta de taxa de inflação, para fazer essa associação, que é um aumento razoável. Percebo a perspetiva que está a transmitir, mas quando estamos a isentar de portagens o transporte rodoviário – e temos todos consciência que não foi uma medida do Governo -, o que é verdade é que não é equitativo. Faz sentido o Governo repensar e perceber em que medida é que está a implementar medidas que permitam não haver uma perda de competitividade face à rodovia, porque é disso que estamos a falar. Vamos ver o que é que o Governo diz.

Quando é que espera ter uma resposta, talvez ainda a tempo do Orçamento do Estado para 2025?

Tem de ser antes, porque neste momento os operadores ferroviário estão a ser confrontados com essa subida de mais de 20%. Por isso é que a nossa atividade reduziu cerca de 10% no primeiro trimestre, porque nós estamos a ser confrontados com uma grande dificuldade que temos de ser competitivos face à rodovia e temos clientes que estão a abandonar a ferrovia para ir para a rodovia, naturalmente. À medida que o tempo vai passando vai piorando e é muito mais difícil recuperar clientes do que retê-los.

Como é que vai decorrer 2024 para os operadores, então?

Pois, os operadores têm a expectativa de perceber isso o mais depressa possível. Neste momento, o ano não está a ser um bom e para invertermos a situação temos de passar a ter essas medidas. Volto a recordar: já houve promessas feitas no passado e temos vindo a aguentar ao longo do último ano e meio, quase dois anos. Chegou o momento de passar das palavras aos atos. Precisamos que o Estado perceba que até agora têm sido os operadores a suportar o custo, o ónus para garantir que os clientes não passam para a rodovia. Se eles não vão continuar a conseguir suportar – e não vão – como é que vai o Estado português fazer, porque corremos o risco de, de facto, chegarmos à conclusão de que a rodovia está a ser a principal beneficiada das decisões do Estado.

Uma das queixas do setor tem sido a derrapagem nos prazos de execução das obras ferroviárias, em alguns casos com atrasos de mais de quatro anos, em que a principal linha de exportação, a linha da Beira Alta, está encerrada para obras desde abril de 2022, quando deveria ter reaberto em novembro desse ano, ou seja, há cerca de ano e meio. Vê alguma luz ao fundo do túnel para esta para alterar esta situação?

Há luz ao fundo de vários túneis, porque a linha da Beira Alta tem imensos túneis. A APEF, desde o início, manifestou junto da Infraestruturas de Portugal disponibilidade para a solução que a Infraestrutura Portugal propôs, que foi o encerramento total da linha. Por uma razão simples, com a linha totalmente encerrada as obras seriam mais rápidas e, por um lado, Portugal beneficiaria porque teria sinergias no âmbito daquilo que são os custos dos encargos com a obra e os operadores não teriam de passar pelo calvário de ter uma linha aberta a pouco e pouco, com vários constrangimentos operacionais e que não beneficiaria ninguém. Os prazos já ultrapassam tudo o que era esperado. A obra da Linha da Beira Alta é uma obra que compreendemos que seja complexa. Percebemos que houve até vicissitudes como a pandemia, como até o roubo de cobre da empreitada, que fez com que se atrasasse bastante a duração da obra. Mas ela tem de ter um fim. E quanto mais percetível for quando é que vai ser esse fim, melhor para todos, porque senão estamos numa incerteza grande, porque também não podemos contratar novos serviços, não podemos disponibilizar novas alternativas aos nossos clientes. O que temos hoje disponível não serve.

E não há nenhuma indicação de prazo de finalização de obra?

A expectativa que a IP tem estado a transmitir é que entre o final deste ano e o princípio do próximo ano poderá haver condições para abrir novamente. Mas não temos nada oficial e não sei se será ainda exequível ou não. Estamos a aguardar. Seria benéfico para todos que as obras acabassem o mais depressa possível e a linha ficasse totalmente aberta e não chegássemos a uma situação em que, de repente, abriam a linha, mas apenas uma parte, ou apenas em certos horários, e passávamos a viver com os constrangimentos operacionais que quisemos evitar desde o início.

Foi um erro encerrar o terminal de contentores da Bobadela sem que fosse planificada qualquer alternativa? 

Mais um episódio que fica difícil para quem é operador perceber e ver aquilo que pode ser a estratégia do país para a ferrovia e para as mercadorias. O terminal de contentores da Bobadela é o maior terminal do país. Se queremos aumentar a carga transportada em Portugal, naturalmente, que estamos a contar com um terminal de mercadorias na zona da Grande Lisboa a full power e com uma grande capacidade de crescimento. A Bobadela oferecia isso. Percebemos que foi necessário encerrar o terminal. A solução que foi implementada permite hoje, para a carga que é transportada, ser uma solução. Conseguimos adaptar-nos, mas para o potencial de crescimento que tem o Terminal Contentores da Bobadela Norte, que é o que está hoje em dia aberto, não chega. Não chega e não dá perspetiva de futuro e, por isso, preocupa-nos que não haja nas decisões que vão sendo tomadas pelo decisor público essa perspetiva de futuro quando olha para o setor dos transportes, porque quando falamos de ferrovia, o investimento em ferrovia nunca é um investimento a um ou dois anos. É investimento sempre a longo prazo. Quando um operador decide comprar um comboio, está a fazer um investimento para 20 ou 30 anos. É preciso perceber que tem que haver aqui uma convergência entre aquilo que é um investimento de longo prazo dos operadores com aquilo que é o investimento de longo prazo do país. Muitas vezes percebemos é que o país toma decisões que não têm em consideração o longo prazo e que criam constrangimentos a quem tem aqui uma um compromisso e uma vontade de investimento a longo prazo.

Quando todas as obras anunciadas forem inauguradas depois de centenas de milhões de euros investidos, acredita que Portugal vai ter transporte ferroviário moderno e eficiente? 

Gostava de dar uma resposta efetiva e, acima de tudo, extremamente positiva, porque é para isso que estamos a trabalhar todos os dias. Mas isso vai depender de várias coisas e algumas delas já aqui falámos na maior parte delas. E essas medidas têm de acontecer para podermos olhar para o dia em que toda a infraestrutura for inaugurada, tudo esteja disponível e sentirmos que temos condições.

Está otimista?

Sou um otimista por natureza, custa-me muito pensar que não será assim, porque ficava muito mal ao país. Acho que, tendo em consideração tudo aquilo que o país fez e está a fazer e ainda vai fazer, chegarmos ao final e vermos que não está a ser utilizado como era esperado, ficamos mal. Todas as pessoas que estão envolvidas, nomeadamente na Infrastruturas de Portugal, estão a trabalhar para que isso aconteça e nós também estamos a lutar para que isso aconteça. Temos de perceber como é que conseguimos, todos em conjunto, estar alinhados na forma, nos pressupostos, na metodologia. Perceber o que é o transporte de mercadorias, as necessidades do mercado e darmos resposta a estas necessidades de mercado. Se não dermos resposta, os nossos clientes vão procurar outras soluções. Há uma máxima no transporte de mercadorias que é: a carga vai sempre arranjar maneira de chegar ao seu destino. Se não for de uma forma, será de outra, mas vai chegar certamente ao destino. Se não for pela ferrovia, vai ser de outra forma. Nós queremos que seja pela ferrovia.

Ver entrevista na íntegra em: https://dinheirovivo.dn.pt/miguel-rebelo-de-sousa-descarbonizar-a-100-o-setor-ferroviario-ate-2030-isso-nao-e-possivel

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